domingo, 17 de janeiro de 2010

Minha mala de viagem

Então começou assim: sem sair de casa, escrever para o maior jornal do país. Aprovada naquela seleção que nunca pensei que fosse dar certo. Aquela, da entrevista que deixou os nervos em frangalhos, embora só o melhor amigo tivesse percebido as pontas dos dedos geladas cinco minutos depois. As passagens e o hotel por conta, de volta à terra da garou (e atualmente, dos alagamentos e estados de atenção) a partir de segunda-feira: uma semana para aprimorar a arte de contar histórias, escrever o que deve e, de vez em quando, o que tem vontade.

Engana-se quem pensa que esse é o verdadeiro desafio. Ele começou muitas horas antes, no momento em que limpei alça e rodinhas e abri a mala em cima da cama e a porta do armário, cheia de dúvidas. O que levar?

Relutei quanto a um resto de sonho guardado num potinho de vidro. São Paulo me pareceu sempre assim, como um restaurante cheio de gente e eu a moça faminta que gruda os dedos sujos do lado de fora da vitrine, observando o festim e sabendo que o segurança truculento não vai me deixar entrar. Mas tomei o cuidado de separar várias peças de coragem. Em situações novas, é sempre bom estar preparada.

Deixei de lado uns restos de arrogância e autoafirmação, já meio esfarrapados. Empacotei com cuidado um sorriso novo e forrei o fundo da mala com toalhas de saudade. Para não amassar, fiz rolinhos pequenos de gentileza e atenção. Coloquei tudo em cima da história do Maranhão, protegendo como se faz com aquelas roupas que a gente sabe que todo mundo vai perguntar como é e onde comprou. Tentei deixar a insônia, mas ela pulou em meio às peças de aventura e diversão antes que eu pudesse impedi-la.

Já estava quase tudo pronto. Só um resto de coração me pôs em dúvida.

Escondido na gaveta do canto por muito tempo, ele me olhava meio murcho, machucado depois de tantos anos batendo abafado e ignorado. Não me olhe assim. Não sabe que é perigoso, deixar um coração assim solto e à vontade?

Encaramo-nos por muito tempo. Ele me trouxe lembranças de mãos dadas e tardes de caminhadas na beira da praia. Lembrança de olhos bonitos e sorriso mais ainda, de carinho que começa na palma da mão e sobe pela parte interna do braço até chegar no cotovelo, arrancando risadas e arrepios. “Mas que gargalhada gostosa, menina”, me ouvi relembrar.

Resignada, tornei a fechar o coração dentro da gaveta, sentindo um comichão absurdo por um último sorriso embevecido. Um afeto e um carinho imensos desesperados para se concretizar ainda tentaram forçar a entrada para fora. Fechei a gaveta rapidamente, sufocando-os.

Passei zíper e cadeado na mala, não sem antes cobrir tudo com uma muralha de pedra.

E, quando eu voltar, vou abrir a gaveta só para perguntar como está o coração. Ele vai me oferecer mais lembranças, forçar o caminho para fora e me trazer algo de verdade ou vai voltar a ficar quieto, adormecido? Vou atrás do meu avião, e não espero para ver...

5 comentários:

tiaselma.com disse...

UEBAAAAAA!!! Cada dia melhor.
E eu aqui, só crossing my fingers...

Beijocas da Selma.

M. A. Cartágenes disse...

Cara, me sentira como uma esponja numa situação como essas.

E sobre os dedos gelados, fisgadas e dormencias até o cotovelo, num sinto isso faz um tempo e é muito bom, eu sei, mas... Sabe como é né?

Quando voltas? Vossa presença é boa numa redação escrava da vida.

Paz em Cristo e boa sorte por aí broto.

Márcio Beckman disse...

Oi prima Citrus Reticulata! ^^ Estou de volta com o Sonolóquios. Gostei da comparação da minha poesia Passagem com o Arnaldo Antunes, parando pra pensar tem tudo haver. Pode ser uma inspiração inconsciente, visto que escuto muito as músicas dele. Abraços!

Unknown disse...

Bonito texto, bonito blog. Como você. Felicidades na nova caminhada.

Everton disse...

Simplesmente fantástico o Blog. TANGERINE, adorei. Parabéns